quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Aquilo que não posso ter...

A cidade era pequena que Sandra quase não cabia nela. Espírita dissimulada, dona de casa de formas esculturais domadas por Leonel, evangélico convertedor, cabo da PM, ciumento. Só deixava a mulher sair aos domingos comportada na grupa da Barra Forte, Novo Testamento embaixo do braço. Comportada exceto pelo vestido vermelho que era a única coisa de que não abria mão. O vermelho e o salto alto eram como um ruído na igrejinha pentecostal que frequentavam. Depois do culto passeavam apaixonados pela praça.

Num passeio típico desses entraram no açougue e algo estremeceu dentro dela, caiu numa espécie de transe. “Pode ser a Pomba Gira”, disseram. “Também ela vive de vermelho, junta isso com cheiro de carne, é encosto certo.” A cidade ficou comovida com o acontecido.

Um mês passou e estranhamente tudo se arrumou. Sandra voltou ao seu jeito vivaz de ser. Dias depois a tragédia. Numa manhã calorenta foram encontrados os corpos do açougueiro e de Sandra no motelzito da beira estrada. Nus, unidos e amparados por uma faixa vermelha, salpicados de cachaça e penas pretas. Uma vela introduzida na disjuntora, um charuto introduzido no varão. Como Leonel estava na capital, o pastor foi o primeiro a chegar.

:: 23.01.2013 ::

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Ilibada

Trabalho como acompanhante. Acompanhante  mesmo, nunca me prostituí. Para você entender melhor, na casa onde trabalho somos como recepcionistas, os clientes pagam só pela companhia, para conversar, e também recebo comissão pelas bebidas que eles consomem. Você não imagina o mundo de solitários que tem por aí. Também ganho presentes caros por causa da minha simpatia, já ganhei até um carro usado. Mas como eu disse, sempre me comportei.

O fato de eu trabalhar com isso nunca incomodou meu marido, pra você ver. A ideia é que a relação com os clientes fique só na fantasia, mas desde que conheci você tenho me saído uma safada. Vivo imaginando uma traição no estilo dois deles me possuindo ao mesmo tempo. Antes, quando um cliente tocava em mim eu fazia cara feia e me afastava. Hoje abro as pernas. Até no ginecologista vou depilada, imagino que ele vai gostar de olhar. Foi você que fez esse buraco na minha moral.

:: 13.06.2003 ::